quarta-feira, 30 de julho de 2008

PECADO CAPIAU


No dia 19 de maio de 1952, um matuto mór nomeado Jõao Guimarães Rosa (ou sêo Jõao Rosa, na fala de Manuelzão) iniciava uma jornada que duraria dez dias atravessando o sertão mineiro, na entrega de uma boiada por um percurso muito bem vivido pelos capiaus que guiavam o comboio. Destes, re-cito o mestre Manuelzão, sêo Zito e Sebastião de Morais, senhores do oficio da lida tropeira.

A inteligente pra-frenteza do sêo João residiu (na minha humilde visão) no fato de atentar para uma sabedoria sem fim, e raramente observada pelos 'da cidade'. Ele acompanhou uma entrega de boiada por dez dias, atravessando o gerais. Deixou-se mesclar ao mundo sertanejo, aos modos matutais. Ele aprendeu as palavras que não se escreviam - com aqueles que não sabiam ler.

Me toma, sempre que me lembro das minhas origens, um orgulho infantil por saber-me vivido num lugar por onde passou tã grandiosa TRAVESSIA, e por ter visto com meus próprios olhos um sêo Manuel Nardi parado na porta da igreja Matriz de Três Marias, esperando seu ônibus para Andrequicé. E na sequência desse orgulho, me toma o remorso. Nunca anotei nenhum de seus causos, e quando naquela casa humilde, não me preocupei em perguntar onde o seu Guima se sentou...etc. Essa é minha
mea culpa, meu pecado capiau. Um fato: eu era só uma criança fascinada com um senhor barbudo, que perambulava humilde e solenemente por uma cidade que não atentava para a pedra histórica que abrigava.

Mas sêo Rosa não foi bobo nem nada, anotava tudo em seu caderninho, ouvia atento os causos e as piadas dos matutos, e não lhes desprezava os modos e superstições. Nonada!(perdão, mas tinha que usar). Os registros desses dez dias de peregrinação, se embolaram de tal maneira a virar o que a gente hoje lê com reverência, o Grande Sertão: Veredas, e a novela da qual faz parte Manuelzão. Uma constatação: O único livro brasileiro entre as 100 maiores obras literária de todos os tempos foi escrito numa terra de veredas que eu vi e também atravessei (mesmo que em parte)!!

É disso que falo quando apelo para a matutice: Das coisas que não se dizem nos livros da escola. Dos livros feitos com olhos e bocas, das leis que ninguém registrou, e que regem esse mundo de forma tão misteriosa. É o mundo dos Gerais
, do vilarejo de Canoeiros, do centenário Andrequicé, do Lassance, do Morro da Garça e tantos outros. O que eu queria mesmo, era que a imagem do matuto de cócoras, mascando seu capim, ou fumando seu 'paieiro' num fim de tarde, fosse respeitada, sem ironia ou gracejos ou (o pior) pena. Visão para a qual, infelizmente contribuiu de forma genial o Mestre Monteiro Lobato, ainda que de forma involuntária, com seu jeca tatu desprovido de decisão e tino.

Que a sapiência matutal sobreviva aos tempos de neons coloridos, aviões e gente correndo dia e noite entre cubos de pedra.

G. Borges

para saber mais sobre Manuelzão, dê aquela bisolhada AQUI